sexta-feira, 19 de junho de 2009

A Confecom e o embate blogosfera vs. mídia corporativa

Embora a sociedade brasileira venha apresentando, com mais vigor no decorrer da última década, um dinamismo acelerado, notadamente nas chamadas classes “C” e “D”, duas áreas, a despeito de mudanças eventuais, mantém-se presas a conformações estruturais quase centenárias: a política institucional/partidária e a chamada “grande imprensa”.

Não pertence ao âmbito deste artigo a discussão do primeiro item, embora seja forçoso reconhecer que, se a eleição de um ex-operário com um passado de esquerda representou um momento de conjunção de tal dinamismo social com exercício maduro de democracia, alguns dos aspectos mais retrógrados da Presidência de Luís Inácio Lula da Silva – a despeito do bom desempenho de sua administração em diversas frentes, notadamente a política externa e as áreas sociais – advém justamente de sua adesão a uma realpolitik por demais elástica, de modo a assegurar a governabilidade através da satisfação das demandas dos donos das capitanias políticas que persistem no Brasil contemporâneo.

A proeminência de duas figuras políticas de um passado de triste memória redivivas na base de apoio lulista é suficiente para ilustrar tal ocorrência: José Sarney, senhor feudal do estado mais pobre da federação e ex-mandatário que deixou a Presidência com a inflação medida na casa das centenas e Fernando Collor de Mello, ex-presidente afastado sob ameaça de impeachment.

Mais complexo ainda é o caso da imprensa – ou melhor, da mídia, porque é irrelevante, se se quer analisar o campo da comunicação no Brasil, discutir o comportamento de órgãos de imprensa escrita sem levar em conta como se portam as mídias televisivas e radiofônicas.

A imprensa escrita passa pela sua maior crise, refletida não apenas na queda vertiginosa da venda de exemplares dos “grandes jornais” (30% menor, em média, de abril de 2008 a abril de 2009), mas – o que seja talvez mais grave – de respeitabilidade e de reconhecimento público, devido a uma série de práticas condenáveis que têm sido sistematicamente reveladas e exaustivamente debatidas na Internet (talvez a mais grave delas a publicação, pela Folha de São Paulo, de uma ficha policial falsa da ministra e possível candidata a presidência Dilma Roussef recebida por email e cuja autenticidade não foi verificada pelo jornal).

Os blogs e a crise da imprensa escrita
A decisão da Petrobras de criar um blog no qual reproduz a íntegra das perguntas enviadas à empresa pelos órgãos de mídia – seguidas, para fins comparativos, da matéria nas perguntas baseada tal como por tais veículos publicada –, além de revelar novas potencialidades para a utilização da ferramenta como instrumento de contrainformação, intensifica a cada vez mais cruenta batalha entre a blogosfera”independente” e a mídia corporativa. O esperneio dos donos de jornais e de seus porta-vozes contra a atitude da Petrobrás enfatiza a dificuldade que têm para compreender as mudanças estruturais por que passa a atividade.

Inovação que se transforma em fenômeno nos EUA do início da presente década – e no Brasil cerca de três anos depois – a emergência de uma blogosfera politicamente ativa e majoritariamente dividida em facções políticas opostas – da qual o embate Luís Nassif versus Reinaldo Azevedo é talvez o exemplo mais ilustrativo, mas de forma alguma o único – representa, muito possivelmente, a mais relevante novidade do cenário político-comunicacional brasileiro, embora seja ainda difícil precisar seus efeitos reais em termos informativos, de formação de opinião e eleitorais.

A blogosfera costuma volta e meia se gabar por alegadamente ter acabado, na marra, com o monópolio da comunicação impressa nas mãos – e nos bolsos – de um punhado de famílias, representantes do conservadorismo em seus diversos matizes. Historicamente, essas forças da imprensa corporativa – aí incluídas as modalidades televisivas e radiofônicas – teriam sido capazes, por um longo período, de barrar ou de restringir a níveis mínimos e alcance reduzido as manifestações contra-hegemônicas no campo da comunicação, como as rádios mal chamadas “piratas”, a imprensa alternativa, as TVs comunitárias (que prometiam proliferar e renovar a mídia televisiva quando do advento da TV a cabo no país), do curtametragismo cinematográfico como atividade rentável, entre outras manifestações. O advento da internet teria possibilitado à blogosfera não apenas apresentar-se como alternativa à essa mídia corporativa e hegemônica, mas trazer à luz suas maquinações, omissões e interesses políticos.

Esse novo cenário tem provocado reações irritadas nos porta-vozes da imprensa corporativa, que oscilam entre a tentativa de ignorar a blogosfera como interlocutor político, passam pela generalização grosseira de seu modus operandi – descrito como monocórdio, agressivo, inculto – e chegam à hostilidade aberta. Um entre vários exemplos possíveis, o colunista da Folha de São Paulo, Clóvis Rossi, volta e meia alfineta o jornalismo cibernético, como na coluna “A coalizão `do bem´” (24/04), em que acusa a sociedade de estar “virtualmente comatosa” – querendo com isso insinuar, a um tempo, uma crítica à baixa capacidade de mobilização popular e um ataque à internet que lhe rouba leitores, entulha sua caixa de emails e aponta seus erros e distorções. (Um blogueiro poderia refutar a ironia ferina de Rossi com a provocação de que ele e os demais jornalistas da Folha é que estariam “corporativamente necrosados”, como o demonstraria não apenas a queda vertiginosa na venda de exemplares, mas o fracasso, nas duas últimas eleições presidenciais, dos candidatos representativos do ideário político que o órgão de imprensa em que trabalham notória mas não assumidamente apoia.)

Não é possível precisar se a blogosfera despertou e incitou uma consciência contrária à “grande mídia” em setores da população ou se apenas catalisou um sentimento que já se encontrava latente. Mas o certo é que – como profusamente o demonstram as caixas de comentários da maioria dos blogs de sucesso (ao menos daqueles aqueles que não filtram comentários com base em identidade políticoideológica), há neste momento uma forte e difusa insatisfação contra a mídia corporativa.

Informação é serviço público
Essa insatisfação, no entanto, muitas vezes se confunde com a ilusão de que a internet se basta e de que a blogosfera seria suficiente para suplantar a mídia corporativa. Essa presunção – à qual não falta a combinação de elitismo, voluntarismo e ingenuidade -, além de não computar devidamente o quanto há de corporativo nos sites, blogs e portais comumente acessados pela maioria, passa ao largo de considerações sobre o altíssimo índice de exclusão digital no Brasil (onde só 35% da população têm acesso regular a computador) e mídias audioviduais muito mais penetrantes em termos de audiência, justamente as que historicamente mais se têm caracterizdo pelo conservadorismo.

A professora universitária Sylvia Moretszohn, falando de uma posição não-militante, fornece um contraponto que induz a uma reflexão essencial sobre o fenômeno da crise na mídia corporativa:
“Não dá pra deixar a grande mídia pra lá, simplesmente. Não só porque continua muito influente – certamente não os jornais impressos, mas a televisão e o rádio, sim –, porém principalmente porque são concessões públicas e, mesmo no caso de não serem (como os impressos ou as suas versões online), ocupam um espaço essencial de serviço público e têm contas a prestar. Não podem disseminar informações falsas, não podem provocar pânico, não podem fazer um monte de coisas que fazem e ficar por isso mesmo”.

Sua intervenção toca em pontos relevantes para o debate, evitando os autoenganos frequentes na blogosfera nos embates entre mídia corporativa e jornalismo na internet. Primeiro, a falácia – naturalizada durante o período de hegemonia do ideário neoliberal – de que, por se constituírem como empresas privadas, os órgãos de imprensa escrita não teriam contas a prestar ao poder público e à sociedade a respeito de suas práticas jornalísticas. Segundo, a excessiva valorização que os críticos da mídia corporativa fazem da imprensa escrita em detrimento do rádio e, sobretudo, da televisão – veículo cujo grau de penetração nos lares brasileiros, em comparação com o da internet e da imprensa, pertence a outra escala de valores.

A questão da profissionalização
A tais questões juntam-se a outras que concernem especificamente aos limites do jornalismo político dito independente na internet. Contam-se nos dedos de uma só mão os blogs políticos não-corporativos em língua portuguesa que se sustentam comercialmente. Portanto, a profissionalização do jornalismo independente na internet brasileira – com raríssimas exceções – não passa, neste momento, de uma quimera. E, com o perdão da redundância, a dura realidade, na internet ou fora dela, é que jornalistas também precisam de recursos para se alimentar, morar, sobreviver. Apenas como exercício mental, imaginemos o que aconteceria no caso de derrocada da mídia corporativa – objetivo assumido de diversos blogueiros. Num cenário em que, por si só, a lógica planetária já pressupõe a supressão de empregos, como observa a crítica literária do Le Monde, Viviane Forrester (em seu belo e dilacerante livro O Horror Econômico, sobre a situação do emprego num mundo globalizado), as dezenas de milhares de estudantes que se formam todos os anos nas faculdades de Comunicação, iriam viver de quê? Faz mesmo sentido a alimentação de um sentimento anti-jornalista, generalizante e preconceituoso, quando isso significa o estímulo ao fechamento de mais postos de trabalho num setor econômico em crise estrutural?

Embora eventualmente a blogosfera política atue como produtora de informação – às vezes de forma pioneira e como voz isolada, como na excelente cobertura que os blogs RS Urgente e Cloaca News há tempos fazem dos escândalos envolvendo a governadora gaúcha Yeda Crusius (PSDB-RS) – outro paradoxo envolvendo a atividade advém do fato de que boa parte do jornalismo político “independente” na internet tem a mídia corporativa como principal fonte de matéria-prima, e um montante considerável da produção blogueira destina-se justamente a criticar matérias por aquela produzida (vide, entre inúmeros exemplos possíveis, o grande volume de posts suscitados pela aludida difusão da ficha falsa de Dilma Roussef e pelo ataque da Folha de São Paulo aos professores Maria Victtoria Benevides e Fábio Konder Comparato).

As características apontadas nos dois últimos parágrafos evidenciam, a um tempo, a necessidade e a quase impossibilidade de a blogosfera, em seu projeto de substituição da mídia corporativa, criar condições materiais para satisfazer às demandas de capital, infraestrutura e recursos humanos especializados necessárias à produção industrial do jornalismo e da notícia. Trata-se de um problema que tem sido sistematicamente negligenciado pela militância cibernética, que continua parecendo crer na perpetuação do trabalho voluntário, autodeterminado e não remunerado como forma de geração “espontânea” da notícia. Equivale a apostar na servidão voluntária.

Mobilização é necessária
O fato de a própria blogosfera “independente” superestimar seu alcance e poder de influência [o leitor duvida? Pergunte às pessoas no trabalho, no barzinho e na família qual a principal fonte de informação delas], ao mesmo tempo em que negligencia os cuidados com as questões materiais que permitiriam a expansão de sua qualidade e audiência, não diminui a importância que ela tem como mais impactante e mais bem-vinda novidade na esfera comunicacional, com enormes potencialidades no campo político e cultural, além da função de vigilante rigorosa das práticas da mídia corporativa que ora exerce.

Mas a autocomplacência que ora exibe pode ser perigosa, sobretudo ante os embates cerrados que têm data marcada para acontecer, em eventos que podem alterar profundamente as bases de funcionamento da atividade comunicacional no Brasil.

A revolução representada pelo advento da internet – e, no âmbito desta, da blogosfera, cuja velocidade de implantação e disseminação tem superado tremendamente a morosidade institucional do Legislativo, não só no Brasil mas em boa parte do mundo desenvolvido – apanhou as forças da mídia corporativa (e do conservadorismo de forma geral) no contrapé. No entanto, é ilusão achar que, com o poder econômico e político que têm, deixarão de fazer de tudo para reverter a situação como ora se encontra, ainda mais porque à medida que a exclusão digital deixar de ser um desafio no país a tendência, naturalmente, é o crescimento da atividade blogueira e virtual.

Dois eventos que terão lugar nos próximos meses deverão influir decisivamente no cenário acima descrito. A primeira será a votação da chamada “Lei Azeredo”, que propõe uma legislação ainda mais draconiana para a internet do que a “lei Hadopi”, recentemente aprovada na França. Se aprovada e se for tornada efetiva – já que uma das características distintivas da internet tem sido a capacidade de driblar legislações nacionais com truques tecnológicos – ela representará efetivamente uma ameaça ao exercício do jornalismo “independente” na internet (leia aqui a impecável análise do professor de Direito Penal e advogado Túlio Vianna sobre o tema).

O outro evento (e razão de ser deste blog) será a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que se realizará entre 01º e 03 de dezembro deste ano, em Brasília, e que tem tudo para se tornar uma espécie de ringue para a medição de forças entre corporações midiáticas de um lado e representantes da sociedade civil, ONGs e militantes da internet de outro. Sem a união destes, há grande chance de – como ocorreu por ocasião do projeto da Ancine – a mídia corporativa impor, uma vez mais, suas demandas – e é quase certo que estas mirarão como alvo preferencial a atividade blogueira na internet. Portanto, a união de todos na luta pela democracia nas comunicações faz-se, ,mais do que nunca, necessária.

Maurício Caleiro é jornalista e cineasta. Mantém o blog Cinema e Outras Artes.

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