Washington Araújo - Observatório da Imprensa - 12.06.2009
No último fim de semana passado estive em Vitória (ES) participando do II Seminário de Educação em Direitos Humanos promovido pela Prefeitura de Vitória. Evento bem organizado, participantes motivados. Coube-me o tema "Mídia e Direitos Humanos", que foi apresentado na abertura do seminário – primeiro dia, primeiro tema, primeira apresentação, primeiro debate. E também primeira preocupação: não participaram profissionais do ramo como jornalistas, radialistas e gente ligada à televisão. Daí já comecei a pensar como o tema direitos humanos é relegado ao ostracismo quando da feitura das pautas.
Evento dessa amplitude em um mundo turvado por violações dos direitos humanos a torto e a direito, à esquerda e à direita, um mundo que conviveu com os campos de extermínio em Auschwitz, Treblinka e Sobibor, sob o império dos nazistas na Segunda Guerra Mundial, e também mais recentemente com os horrores da prisão de Abu Ghraib, em Bagdá, não poderia passar batido ao menos na mídia local. Mas passou. E continuará passando. É como se existisse um pacto solene dos meios de comunicação para ignorar a temática enfeixada sob o título direitos humanos.
Espaço precário
Algumas ideias preconcebidas (poderíamos chamar preconceitos) tomaram consistência ao longo dos anos e continuam vigindo nos anos recentes em que o Brasil reconquistou o estado de Direito e a democracia. Uma dessas é especialmente perniciosa: direitos humanos é o mesmo que "direitos dos bandidos". Ora, essa leitura torcida da realidade somente se explica pelos vinte anos em que o Brasil mergulhou nas trevas do arbítrio, na ditadura militar iniciada com o golpe de 1964.
Naqueles anos, quem ousasse clamar por liberdade, justiça e seus derivativos reunia os predicados para engrossar a população carcerária. Os cidadãos e cidadãs presos eram sumariamente rotulados como bandidos. E não importava se o preso era o professor de filosofia da USP ou da Unicamp, bandido era. Milhares de universitários tinha o relógio de suas vidas parado. Parte ingressava nos presídios, boa parte passava para a clandestinidade. Mundos paralelos existem quando países são (des)governados por ditadores.
Vasta documentação iniciando com o projeto "Brasil – Tortura Nunca Mais" dão conta desse período, época em que para os governantes de plantão falar em direitos humanos era apenas falar em direitos dos bandidos. Alguns filmes retratram à perfeição os anos 1964-1984: O que é isso, companheiro?, Pra frente Brasil, Lamarca, Angel, Batismo de Sangue. Advogados talentosos sobressaíram: Heleno Fragoso, Raymundo Faoro, Evaristo de Morais Filho, Helio Bicudo, Gilson Nogueira, Marcio Thomaz Bastos, Herilda Balduíno representaram dezenas de presos políticos, os bandidos daqueles anos de chumbo.
O fato é que a pecha ficou. E continua em nossos dias. Direitos humanos, direitos dos bandidos. Mantendo a tradição de lutar pela liberdade de opinião quando os principais luminares do pensamento dito de esquerda se encontravam encarcerados, é fato que ainda hoje muitos defensores dos direitos humanos fazem a ronda regular nos presídios para denunciar a prática da tortura contra aqueles sob a proteção do Estado. E assim, uma vez mais, a sociedade deixou de distinguir o trabalho em favor da promoção dos direitos humanos como sendo o trabalho em favor dos criminosos que superlotam nossas penitenciárias.
Fazer tal confusão não é uma raridade, se até bem há pouco acompanhávamos neste Observatório da Imprensa a discussão jurídica – e não apenas de semântica – suscitada pela Folha de S.Paulo quando aludiu à ditadura brasileira como sendo uma "ditabranda", se comparada com a ferocidade de outras ditaduras ao largo e ao longo da América do Sul. Um dos muitos crimes gerados pelo estado de exceção foi o de confinar a visão dos direitos humanos ao pequenino espaço em que estão as pessoas apenadas resultante dos processos legais contra estas instaurados.
Minuto a minuto
A mídia também ignora os direitos humanos em outras instâncias. Quando, por exemplo, organizações da sociedade civil promovem discussão sobre políticas públicas para elevar a dignidade humana, contra o trabalho infantil, contra o trabalho escravo, contra a exploração sexual de crianças e adolescentes, contra a violência doméstica, contra a violência policial e em especial se as vítimas são moradores de rua ou meninas e meninos de rua.
Chama a atenção observar o enfoque dado por parte da mídia nacional em seu esforço para criminalizar movimentos sociais com o dos trabalhadores rurais sem terra. A mídia mostra todo o seu corporativismo ao ser seletiva na expressão de indignação contra a violação dos direitos humanos de celebridades como a atriz Daniela Perez (dezembro/1992), o jornalista Tim Lopes (junho/2002), o apresentador de televisão Luciano Huck (outubro/2007), a atriz Suzana Vieira (dezembro/2008), apenas para mencionar alguns.
Esta seletividade obedece a critérios como raridade, ineditismo e infelizmente na maioria dos exemplos mencionados as pessoas tiveram o relógio de sua vida parado com requintes de crueldade. A honrosa exceção está para Luciano Huck, que foi capa da revista Época e ocupou espaço privilegiado na Folha de S.Paulo para desaguar seu desabafo com o roubo de seu relógio Rolex.
Não precisaríamos pesquisar muito para ver que nas datas citadas ocorreram lamentavelmente inúmeras tragédias, chacinas com grande número de vítimas e, também infelizmente, com "a marca da maldade". Agora mesmo estou empenhado em um projeto que visa analisar o espaço que a mídia brasileira concede ao tema direitos humanos e, pelo que já vi, trata-se de espaço diminuto se comparado com as pautas sobre estilo de vida, show-business, novas tecnologias e… futilidades.
A alternativa a este cardápio vem a ser a cobertura minuto a minuto das grandes tragédias humanas: tsunamis, terremotos, quedas de avião. Nesses casos, o vilão é invariavelmente alguma força da natureza. Quando o vilão é o próprio homem, o tema passa batido nas redações.
Washington Araújo é mestre em comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo.
No último fim de semana passado estive em Vitória (ES) participando do II Seminário de Educação em Direitos Humanos promovido pela Prefeitura de Vitória. Evento bem organizado, participantes motivados. Coube-me o tema "Mídia e Direitos Humanos", que foi apresentado na abertura do seminário – primeiro dia, primeiro tema, primeira apresentação, primeiro debate. E também primeira preocupação: não participaram profissionais do ramo como jornalistas, radialistas e gente ligada à televisão. Daí já comecei a pensar como o tema direitos humanos é relegado ao ostracismo quando da feitura das pautas.
Evento dessa amplitude em um mundo turvado por violações dos direitos humanos a torto e a direito, à esquerda e à direita, um mundo que conviveu com os campos de extermínio em Auschwitz, Treblinka e Sobibor, sob o império dos nazistas na Segunda Guerra Mundial, e também mais recentemente com os horrores da prisão de Abu Ghraib, em Bagdá, não poderia passar batido ao menos na mídia local. Mas passou. E continuará passando. É como se existisse um pacto solene dos meios de comunicação para ignorar a temática enfeixada sob o título direitos humanos.
Espaço precário
Algumas ideias preconcebidas (poderíamos chamar preconceitos) tomaram consistência ao longo dos anos e continuam vigindo nos anos recentes em que o Brasil reconquistou o estado de Direito e a democracia. Uma dessas é especialmente perniciosa: direitos humanos é o mesmo que "direitos dos bandidos". Ora, essa leitura torcida da realidade somente se explica pelos vinte anos em que o Brasil mergulhou nas trevas do arbítrio, na ditadura militar iniciada com o golpe de 1964.
Naqueles anos, quem ousasse clamar por liberdade, justiça e seus derivativos reunia os predicados para engrossar a população carcerária. Os cidadãos e cidadãs presos eram sumariamente rotulados como bandidos. E não importava se o preso era o professor de filosofia da USP ou da Unicamp, bandido era. Milhares de universitários tinha o relógio de suas vidas parado. Parte ingressava nos presídios, boa parte passava para a clandestinidade. Mundos paralelos existem quando países são (des)governados por ditadores.
Vasta documentação iniciando com o projeto "Brasil – Tortura Nunca Mais" dão conta desse período, época em que para os governantes de plantão falar em direitos humanos era apenas falar em direitos dos bandidos. Alguns filmes retratram à perfeição os anos 1964-1984: O que é isso, companheiro?, Pra frente Brasil, Lamarca, Angel, Batismo de Sangue. Advogados talentosos sobressaíram: Heleno Fragoso, Raymundo Faoro, Evaristo de Morais Filho, Helio Bicudo, Gilson Nogueira, Marcio Thomaz Bastos, Herilda Balduíno representaram dezenas de presos políticos, os bandidos daqueles anos de chumbo.
O fato é que a pecha ficou. E continua em nossos dias. Direitos humanos, direitos dos bandidos. Mantendo a tradição de lutar pela liberdade de opinião quando os principais luminares do pensamento dito de esquerda se encontravam encarcerados, é fato que ainda hoje muitos defensores dos direitos humanos fazem a ronda regular nos presídios para denunciar a prática da tortura contra aqueles sob a proteção do Estado. E assim, uma vez mais, a sociedade deixou de distinguir o trabalho em favor da promoção dos direitos humanos como sendo o trabalho em favor dos criminosos que superlotam nossas penitenciárias.
Fazer tal confusão não é uma raridade, se até bem há pouco acompanhávamos neste Observatório da Imprensa a discussão jurídica – e não apenas de semântica – suscitada pela Folha de S.Paulo quando aludiu à ditadura brasileira como sendo uma "ditabranda", se comparada com a ferocidade de outras ditaduras ao largo e ao longo da América do Sul. Um dos muitos crimes gerados pelo estado de exceção foi o de confinar a visão dos direitos humanos ao pequenino espaço em que estão as pessoas apenadas resultante dos processos legais contra estas instaurados.
Minuto a minuto
A mídia também ignora os direitos humanos em outras instâncias. Quando, por exemplo, organizações da sociedade civil promovem discussão sobre políticas públicas para elevar a dignidade humana, contra o trabalho infantil, contra o trabalho escravo, contra a exploração sexual de crianças e adolescentes, contra a violência doméstica, contra a violência policial e em especial se as vítimas são moradores de rua ou meninas e meninos de rua.
Chama a atenção observar o enfoque dado por parte da mídia nacional em seu esforço para criminalizar movimentos sociais com o dos trabalhadores rurais sem terra. A mídia mostra todo o seu corporativismo ao ser seletiva na expressão de indignação contra a violação dos direitos humanos de celebridades como a atriz Daniela Perez (dezembro/1992), o jornalista Tim Lopes (junho/2002), o apresentador de televisão Luciano Huck (outubro/2007), a atriz Suzana Vieira (dezembro/2008), apenas para mencionar alguns.
Esta seletividade obedece a critérios como raridade, ineditismo e infelizmente na maioria dos exemplos mencionados as pessoas tiveram o relógio de sua vida parado com requintes de crueldade. A honrosa exceção está para Luciano Huck, que foi capa da revista Época e ocupou espaço privilegiado na Folha de S.Paulo para desaguar seu desabafo com o roubo de seu relógio Rolex.
Não precisaríamos pesquisar muito para ver que nas datas citadas ocorreram lamentavelmente inúmeras tragédias, chacinas com grande número de vítimas e, também infelizmente, com "a marca da maldade". Agora mesmo estou empenhado em um projeto que visa analisar o espaço que a mídia brasileira concede ao tema direitos humanos e, pelo que já vi, trata-se de espaço diminuto se comparado com as pautas sobre estilo de vida, show-business, novas tecnologias e… futilidades.
A alternativa a este cardápio vem a ser a cobertura minuto a minuto das grandes tragédias humanas: tsunamis, terremotos, quedas de avião. Nesses casos, o vilão é invariavelmente alguma força da natureza. Quando o vilão é o próprio homem, o tema passa batido nas redações.
Washington Araújo é mestre em comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo.
Fonte: Direito à Comunicação
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