Por Eugênio Bucci
Pela democratização dos meios de comunicação. Apesar da rima em "ão", passei a juventude defendendo o bordão. Não só a juventude: eu já tinha mais de 40 quando, no final de 2002, aceitei o convite para presidir a Radiobrás pensando exatamente em democratizar os meios, pelo menos os públicos. Foi uma experiência instrutiva. Quando alguém do governo aparecia repetindo para mim a velha palavra de ordem, eu respondia correndo: "Ótimo, estou de acordo. Vamos começar pelos meios do Estado." Causei muito estranhamento. Para a maioria dos meus interlocutores federais, as emissoras do Estado deveriam difundir a versão dos governantes. Deveriam, em suma, ser parciais, embora não fosse assim, com essa palavra, que os adeptos oficiais do meu bordão de juventude formulassem suas pretensões. Para eles, que viam na "mídia privada" um partido "de oposição", a "mídia pública" tinha de fazer o contrapeso, mostrando "o nosso lado", como um advogado de defesa. Acreditavam que a verdade emergiria como média aritmética entre as duas distorções, a "deles" e a "nossa". Quanto mais puxássemos o relato dos fatos para o "nosso" lado, mais a verdade resultante se aproximaria do "nosso" pensamento.
Não precisei de muito tempo para perceber que a estratégia comunicacional da verdade como média aritmética não incluía a democracia nos meios públicos, pois não incluía o apartidarismo, a objetividade e o respeito ao direito à informação. Dentro daquela estratégia, o termo "democratização" era um biombo para esconder o aparelhamento puro e simples. Entre batalhas perdidas e batalhas ganhas, tentei me opor a isso. Interesses de governo, eu dizia, não podem ter lugar na definição da pauta de veículos jornalísticos, principalmente dos veículos estatais. Às vezes, meus interlocutores contraíam o corpo: "Mas como? O governo teve milhões de votos e tem legitimidade para participar da condução das emissoras públicas!" Eu contra-argumentava: quem governa recebe mandato para gerir o governo, não para mediar o debate público; por mais votos que receba um candidato, ele não tem mandato para direcionar o modo como os cidadãos discutem a política, a economia, a cultura, a ciência, a religião, o que for. Acho que não convenci quase ninguém.
Saí da Radiobrás já faz dois anos e meio e, hoje, noto que não houve mudanças substantivas na área. As pressões governamentais continuam gigantescas nas emissoras públicas, tanto nas estaduais como nas federais. Elas estão longe da sociedade - e próximas, em demasia, do Executivo. O Brasil não democratizou suas emissoras públicas.
Agora, observo os preparativos da 1ª Conferência Nacional da Comunicação, convocada pelo governo federal, que vai ocorrer no final do ano, depois de várias conferências regionais. É claro que a comunicação social deve ser discutida pela sociedade. Esse debate melhora a democracia. Por isso, a depender do curso que adote, a conferência poderá ser uma boa notícia.
Mas vamos precisar as coisas. A expressão "comunicação social" é genérica demais. O ponto que interessa é o da radiodifusão. Nesse setor, ainda convivemos com oligopólios privados que remontam à prática do coronelismo. Em algumas regiões do País há verdadeiros conglomerados de estações de rádio e TV que trabalham abertamente pela manutenção de oligarquias, manipulando noticiários locais de forma acintosa. O quadro agravou-se de uns tempos para cá, quando recrudesceram as associações indevidas entre igrejas, partidos políticos e redes de TV, o que não é positivo em nenhuma democracia. Como concessão pública que é, a radiodifusão só se vai modernizar entre nós quando tivermos uma regulamentação e uma regulação que limitem a propriedade cruzada dos meios, a concentração do mercado anunciante numa só empresa e a promiscuidade entre política, máquinas religiosas e emissoras. Sem isso não haverá ambiente saudável de concorrência comercial e não haverá, também, diversidade no espaço público. No mais, a palavra-chave é liberdade. O governo não pode interferir em conteúdos. Ponto. Mas... e quanto aos meios públicos ou estatais, que padecem de problemas análogos? Nada se vai falar contra eles?
A conferência poderá inovar - e "avançar", como alguns gostam de dizer - se souber criticar os governos com independência, exigindo a legislação adequada para o setor. É uma legislação que não tem mistérios, que já foi adotada, com variantes, nas maiores democracias do mundo. As soluções já são conhecidas há tempos, tanto que Sérgio Motta, quando ministro das Comunicações no período FHC, tentou elaborar um projeto de lei para a radiodifusão, mas a ideia não prosperou. Desde então, o governo não tomou mais nenhuma iniciativa.
Por que essa paralisia? Em parte, porque o status quo da radiodifusão comercial resiste a qualquer mudança (quanto a isso, é constrangedor verificar o silêncio dos telejornais sobre o assunto). De outra parte, porque as emissoras ligadas ao Estado também se recusam a se redefinir e seguem incólumes. Os movimentos que apoiam a conferência não primam por atacar com a devida intransigência o aparelhamento dos meios públicos, numa atitude que parece um reflexo, com sinal invertido, do silêncio das emissoras privadas. Nisto repousa o maior risco da conferência: se ela se deixar capturar pelos estrategistas oficiais da média aritmética, pode virar apenas um palanque para os que não querem mudar nada, só querem acuar as redes comerciais em ano eleitoral.
Pela democratização dos meios de comunicação. Com o perdão da rima em "ão", ainda prezo o espírito do velho bordão, mas desconfio das autoridades que o repetem à exaustão. No pé em que as coisas estão, isso ainda vai demorar um tempão.
Eugênio Bucci, jornalista, professor da ECA-USP, é autor de Em Brasília, 19 Horas (Editora Record)
Fonte: Estadão
Pela democratização dos meios de comunicação. Apesar da rima em "ão", passei a juventude defendendo o bordão. Não só a juventude: eu já tinha mais de 40 quando, no final de 2002, aceitei o convite para presidir a Radiobrás pensando exatamente em democratizar os meios, pelo menos os públicos. Foi uma experiência instrutiva. Quando alguém do governo aparecia repetindo para mim a velha palavra de ordem, eu respondia correndo: "Ótimo, estou de acordo. Vamos começar pelos meios do Estado." Causei muito estranhamento. Para a maioria dos meus interlocutores federais, as emissoras do Estado deveriam difundir a versão dos governantes. Deveriam, em suma, ser parciais, embora não fosse assim, com essa palavra, que os adeptos oficiais do meu bordão de juventude formulassem suas pretensões. Para eles, que viam na "mídia privada" um partido "de oposição", a "mídia pública" tinha de fazer o contrapeso, mostrando "o nosso lado", como um advogado de defesa. Acreditavam que a verdade emergiria como média aritmética entre as duas distorções, a "deles" e a "nossa". Quanto mais puxássemos o relato dos fatos para o "nosso" lado, mais a verdade resultante se aproximaria do "nosso" pensamento.
Não precisei de muito tempo para perceber que a estratégia comunicacional da verdade como média aritmética não incluía a democracia nos meios públicos, pois não incluía o apartidarismo, a objetividade e o respeito ao direito à informação. Dentro daquela estratégia, o termo "democratização" era um biombo para esconder o aparelhamento puro e simples. Entre batalhas perdidas e batalhas ganhas, tentei me opor a isso. Interesses de governo, eu dizia, não podem ter lugar na definição da pauta de veículos jornalísticos, principalmente dos veículos estatais. Às vezes, meus interlocutores contraíam o corpo: "Mas como? O governo teve milhões de votos e tem legitimidade para participar da condução das emissoras públicas!" Eu contra-argumentava: quem governa recebe mandato para gerir o governo, não para mediar o debate público; por mais votos que receba um candidato, ele não tem mandato para direcionar o modo como os cidadãos discutem a política, a economia, a cultura, a ciência, a religião, o que for. Acho que não convenci quase ninguém.
Saí da Radiobrás já faz dois anos e meio e, hoje, noto que não houve mudanças substantivas na área. As pressões governamentais continuam gigantescas nas emissoras públicas, tanto nas estaduais como nas federais. Elas estão longe da sociedade - e próximas, em demasia, do Executivo. O Brasil não democratizou suas emissoras públicas.
Agora, observo os preparativos da 1ª Conferência Nacional da Comunicação, convocada pelo governo federal, que vai ocorrer no final do ano, depois de várias conferências regionais. É claro que a comunicação social deve ser discutida pela sociedade. Esse debate melhora a democracia. Por isso, a depender do curso que adote, a conferência poderá ser uma boa notícia.
Mas vamos precisar as coisas. A expressão "comunicação social" é genérica demais. O ponto que interessa é o da radiodifusão. Nesse setor, ainda convivemos com oligopólios privados que remontam à prática do coronelismo. Em algumas regiões do País há verdadeiros conglomerados de estações de rádio e TV que trabalham abertamente pela manutenção de oligarquias, manipulando noticiários locais de forma acintosa. O quadro agravou-se de uns tempos para cá, quando recrudesceram as associações indevidas entre igrejas, partidos políticos e redes de TV, o que não é positivo em nenhuma democracia. Como concessão pública que é, a radiodifusão só se vai modernizar entre nós quando tivermos uma regulamentação e uma regulação que limitem a propriedade cruzada dos meios, a concentração do mercado anunciante numa só empresa e a promiscuidade entre política, máquinas religiosas e emissoras. Sem isso não haverá ambiente saudável de concorrência comercial e não haverá, também, diversidade no espaço público. No mais, a palavra-chave é liberdade. O governo não pode interferir em conteúdos. Ponto. Mas... e quanto aos meios públicos ou estatais, que padecem de problemas análogos? Nada se vai falar contra eles?
A conferência poderá inovar - e "avançar", como alguns gostam de dizer - se souber criticar os governos com independência, exigindo a legislação adequada para o setor. É uma legislação que não tem mistérios, que já foi adotada, com variantes, nas maiores democracias do mundo. As soluções já são conhecidas há tempos, tanto que Sérgio Motta, quando ministro das Comunicações no período FHC, tentou elaborar um projeto de lei para a radiodifusão, mas a ideia não prosperou. Desde então, o governo não tomou mais nenhuma iniciativa.
Por que essa paralisia? Em parte, porque o status quo da radiodifusão comercial resiste a qualquer mudança (quanto a isso, é constrangedor verificar o silêncio dos telejornais sobre o assunto). De outra parte, porque as emissoras ligadas ao Estado também se recusam a se redefinir e seguem incólumes. Os movimentos que apoiam a conferência não primam por atacar com a devida intransigência o aparelhamento dos meios públicos, numa atitude que parece um reflexo, com sinal invertido, do silêncio das emissoras privadas. Nisto repousa o maior risco da conferência: se ela se deixar capturar pelos estrategistas oficiais da média aritmética, pode virar apenas um palanque para os que não querem mudar nada, só querem acuar as redes comerciais em ano eleitoral.
Pela democratização dos meios de comunicação. Com o perdão da rima em "ão", ainda prezo o espírito do velho bordão, mas desconfio das autoridades que o repetem à exaustão. No pé em que as coisas estão, isso ainda vai demorar um tempão.
Eugênio Bucci, jornalista, professor da ECA-USP, é autor de Em Brasília, 19 Horas (Editora Record)
Fonte: Estadão
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